domingo, 1 de novembro de 2015

Despertadores (ou dias de ursinho)

Como quando a gente dormia junto e o seu cotovelo se encaixava perfeitamente na minha cintura, eu queria muito me mexer, mas não me mexia pra você não acordar, porque você ia levantar muito cedo no dia seguinte, seus malditos horários e todos aqueles despertadores, o do celular, o que ficava no outro canto do quarto que te obrigava a levantar para desligá-lo, e eu abria meu olho, assim, bem pouquinho, com cara de poucos amigos, não era de manhã, era de madrugada, e eu levantava, me vestia, e sentava na pontinha da cama enquanto você lavava o rosto. Vamos? Vamos. E como quando depois de um tempo eu me mexia sim, mesmo que você tivesse que levantar muito cedo, não era cedo, era madrugada, e mesmo que você tivesse acordado no meio da noite, não era noite, era madrugada, pra resolver um problema do trabalho. Como você sabia quando era trabalho? Tantas vezes não me respondeu, estava dormindo, cansado, desculpa, morto, capotado, mas você sabia quando era trabalho, e mesmo quando tinha que acordar muito cedo, de madrugada, e já tivesse ficado acordado até muito tarde, de madrugada, você sabia quando era. Mas eu não ligava mais, ia pro outro lado da cama, ficava sozinha mesmo que o tempo fosse curto, porque os despertadores iam começar a tocar, desperta dores, dores despertadas, arrependimento instantâneo de não ter ficado grudada em você. Eu já tinha transformado o meu sentimento em um pouco de receio, eu gostava de um jeito que você não gostava, não tinha motivo e eu gostava, a sua mão apertando o meu ombro no primeiro dia que a gente saiu, eu sentia aquela mão no meu ombro como no primeiro dia que a gente saiu, mesmo que aquela mão não estivesse no meu ombro, mesmo que aquela mão não estivesse em lugar nenhum.

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Pegadas

Aprendi a escrever, então comecei a escrever. Foi minha primeira arma contra a melancolia. Dessa época veio a palavra crise. Eu entendia que meus momentos de pensamentos melancólicos eram crises. Eu tinha várias, o tempo todo. Crise porque era tímida, crise porque era ansiosa, crise porque eu não entendia. Eu naturalizei a crise. Era como se eu estivesse de acordo. Ela viria. Eu sentiria. Eu me desmancharia. Ela iria embora. Eu me recomporia e esperaria pela próxima. Um dia, bem nova, escrevi que as crises pisavam em latas de tinta antes de chegarem, porque elas pisavam em mim, e isso por si só já era doído, mas ainda deixava rastros. As pisadas marcadas pela tinta ficavam até mesmo quando não estava sendo pisada mais. Eu sentia o peso das pisadas mesmo quando não havia mais peso em cima delas. A sensação de sentir a sensação da pisada era tão – ou mais – assustadora que a própria pisada. E assim eu entendi, por um tempo, o que era ter tendências melancólicas.

domingo, 12 de julho de 2015

Fragilidade

A imagem de uma boca tão bem delineada quanto os olhos amendoados mais bonitos que já pude ver de perto. O bigode em volta que se mexe cada vez que sorri, e sorri tanto, e volta a ficar sério, e sorri de novo, acompanhado de um risinho desses nervosos, desses que não sabemos, desses indecifráveis. Porque não é pra decifrar mesmo. Somos de poucas palavras – nos tornamos de muitas respirações. A mais forte que me desconcentra, a devagar que me arrepia, a pausada que me dá paz. Porque não é pra falar mesmo. Quando o silêncio não incomoda é um bom sinal – somos de muitos olhares. Você comenta sobre as cores dos prédios enquanto eu observo seus cachinhos se desfazerem entre meus dedos. Olho mais um pouco – desvio, desvia. Você me abraça, eu me deixo, você me aperta, eu entendo. A imagem de uma boca tão bem delineada indo ao encontro da minha. Encaixes, graças e percepções.

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Pés gelados e meias

Sabe aquelas noites frias em que você se encolhe debaixo das cobertas e só depois percebe que esqueceu de colocar meias? Seus pés estão gelados, ao mesmo tempo em que você não está ruim de um todo. Você está aquecido, só os pés estão gelados. Depois de um tempo, os pés gelados parecem não te deixar mais confortável. O momento da consciência do desconforto até a coragem de levantar para pegar as meias é a nossa relação. Não é ruim de um todo, mas quando você decide levantar e pegar as meias, percebe que ter pés aquecidos é melhor.

domingo, 10 de agosto de 2014

Reflexo

Aconteceu, não foi mais possível negar. Se negar, por vezes, é o que resta, sentir tanto complica toda a situação. Os beijos, os abraços, os apertos – esses poderiam ser negados, ignorados, numa tentativa de, talvez, esquecê-los. Mas as sensações, sempre as sensações. Não se trata do melhor beijo, nem do abraço mais aconchegante, nem dos olhos mais brilhantes. É o que se sente. É daquelas coisas que Shakespeare deve ter querido dizer, porque “há mais coisas entre o céu e a Terra do que supõe nossa vã filosofia”. Então te transformo em fantasma, porque você me assombra, me faz querer fugir, me faz querer tomar decisões do tipo: olha, isso já foi longe demais. “Não se martirize”. Não é martírio moral. Ou é. Só que pouco. É martírio de incompletude. Porque você não deveria chegar e me fazer repensar nos caras tão legais e atenciosos que querem me fazer feliz. Esses caras que me compreendem, mas nunca vão me entender. Consegue ver? A diferença entre entender e compreender. Veja só, deixo meu copo de cerveja esquentar para pensar nessas frágeis diferenças e nesses clichês que fazem parte do meu ser. Compreender, entender. “Vou dormir, preciso pensar em tudo o que aconteceu aqui”. Não tem o que pensar. A vida é repleta de polaridades, só que nem todas somam. Consegue entender o que é polaridade? Aquilo que atrai, que faz querer estar perto. Mas somar, não soma. Às vezes subtrai, em outras divide... “Estou te poupando de muitas lágrimas e sofrimentos”. Para um conto, poderia reconstituir a noite e pensar num desfecho. Para uma crônica, poderia pensar sobre as situações inevitáveis da vida. Para um romance, me esforçaria para estender diversas situações que, provavelmente, não teriam um final feliz. O poema eu deixo pra você. Fica assim: eu com minhas linhas tortas e vulgares, você com seus versos livres e encantadores.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Espelho

Eu não fiquei com você. Nem vi você me olhando de canto de olho durante uma festa. Eu não deixei você pegar minha mão. Nem deixei você me segurar nos seus braços. Eu não conversei com você. Muito menos permiti que você ficasse grudado em mim na pista de dança. Eu não procurei o seu olhar. Nem deixei você falar no meu ouvido qualquer comentário sobre alguma pessoa. Eu não fui lá fora com você. Nem deixei que você queimasse meu vestido com a ponta de um cigarro. Eu não falei sobre mim. Nem ouvi os seus galanteios ou qualquer coisa sobre sua vida. Eu não te olhei nos olhos. Nem deixei que você olhasse nos meus. Eu não aceitei nenhum pedido. Nem ouvi qualquer elogio. Eu não ri de nenhuma piada. Muito menos borrei meu batom. Eu não te beijei. Nem me deixei ser beijada. Eu não te abracei. Nem me deixei ser abraçada. Eu não me rendi. Nem deixei que você se rendesse. Eu realmente não deixei que você me cheirasse e me apertasse. Eu nem sei que você existe. Nada aconteceu.  

quinta-feira, 31 de julho de 2014

Aquilo que passa

Ele senta do meu lado e eu penso que deveria ter feito as unhas, porque, assim, de cabeça baixa, restam poucos lugares para ele repousar os olhos – minha mão e meu aparelho tecnológico cheio de músicas. Toda vez que o ônibus mexe demais, ele não se importa que meus ombros, tão pesados naquele dia, encoste nos dele. O cheiro do meu xampu de frutas vermelhas chega aos seus sentidos por meio dos ventos daquele dia de inverno com sol. Quase pude ver um sorriso toda vez que inclinava um pouco o rosto e o dele virava, me deixando como campo de visão uma barba mal feita, que dava vontade de arrumar. Meu quadril, numa tentativa de se ajeitar no banco pequeno, bate numa mão inquieta. Ele levanta. Eu ainda permaneço sem conseguir olhá-lo. Mas ele olha. Para trás. Levanto o olhar, mas não a cabeça. Ele sorri. Desce. Procura meu olhar mesmo de longe. Eu não olho. Para olhar precisaria olhar para trás. Eu quase nunca olho para trás. 

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Sobre sentir: não se desculpem

Se formos viver tudo que aparece na nossa frente, acabaríamos caindo num vácuo, num vazio sem fim. Por isso trata-se de escolha. “Escolhi estar com você”. Escolhi... Mesmo não sabendo como serão as próximas horas, quem dirá o próximo dia, a próxima semana. E não me peça para dizer que não estou envolvida. Sou humana. Tenho sentimentos. Eu me envolvo. Depois de alguns beijos e umas noites mal dormidas, porém aconchegantes. Porque eu sou humana e a impressão que dá é que, por vezes, há que se pedir desculpa por se envolver. “Desculpa, me perdoa por esse deslize – me envolvi”. Não façamos isso. Não escondamos tantos nossos sentimentos. Demonstremos, sim, o quanto estamos interessados! Não confundamos liberdade com insensibilidade. Ninguém precisa se casar depois de uns beijos, ninguém precisa se prender – sem querer – depois de alguns encontros. Mas não caiam na tristeza de viver histórias individuais o bastante para deixá-los, enfim e infelizmente, menos humanos, menos cheios, menos inspirados. Decidam! Optem pelos caminhos que te façam transbordar mais amor e alegria e, quando conseguirem isso, tratem de compartilhar. Relacionar-se tem que ter qualquer coisa disso: de partilha e de emoção. E de amor, por que não? Amor no sentido mais amplo. Não se prendam a tantas construções sociais. Falaram, sim, para você, que alguém fica mais interessado quando você ignora, quando você deixa de correr atrás, quando você é difícil. Bobeira! Pessoas de verdade – e aqui não consigo fugir desse clichê mal explicado com um pouquinho de juízo de valor – querem apenas se elevar. E uma relação tem que trazer isso – mudança. Que dói, melhora, fortifica e, sobretudo, humaniza.

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Se as estrelas não brilham da primeira vez

Estava começando a aceitar que boa parte das coisas são ilógicas, mas não podia negar: adorava quando tudo fazia sentido. Depois de abrir os olhos pausadamente, como que com receio de abri-los e lembrar-se de todos os acontecimentos da noite anterior, apalpou o pescoço para certificar-se que seu colar ainda estava no lugar que deveria estar. Levava no peito um pingente em formato de chave e explicava o sentido daquilo raramente. Abriu a janela, sentiu cheiro de chuva e melancolia: o dia estava lilás.  

Pegou uma xícara de chá gelado e pôs-se a pensar. Teve a impressão de que a vida é um eterno comparar e ponderou: talvez por isso a ignorância seja uma benção. Essa frase vinha sendo recorrente na sua semana. Se não conhece, não sente falta, se não conhece o melhor, não se importa em ter o pior. Considerações bobas, fáceis e até infantis. Pensou que continuava testando e não se importava tanto assim. Mas todos sabem que quem realmente não se importa, nem pensa na possibilidade de dizer que não se importa. Sentiu uma angústia da vida. Um velho sentimento que conhecia bem. Ela, que nem tinha tanto conhecimento, já queria muito. Como é que seria? Depois sentiu que outra sensação estava chegando. Arrumou o cabelo, despenteando seus cachos desgrenhados pelo sono da manhã, e logo ela apareceu: a culpa pela insatisfação crônica, seguida de um sentimento confuso, de pensar que, talvez, devesse diminuir seu senso crítico em relação à vida. 

O equilíbrio que havia começado a buscar – por diversos meios e de diversas formas – a fez entender cedo que não precisa viver, no sentido de vivenciar, para saber. A experiência dos outros é um prato cheio pra quem apenas se propõe a ajudar quem quebrou a cara – e preserva a sua. Mas tem o outro lado, ela precisava viver, e viver é sentir, e sentir tem que ser qualquer coisa além de desânimo. Como quando o palhaço distrai a platéia para que arrumem o palco. É escolha. Cada um decide para onde vai olhar: para o espetáculo ou para a arrumação. Bethania estava sempre olhando a arrumação, enquanto de plano de fundo ouvia as gargalhadas alheias de uma alegria momentânea, que não era sua.

Nessa onda de epifanias, lembrou-se do que se esforçava para esquecer. Foi num domingo e já estava na hora de sair. Vestiu seu fone de ouvido – e nesse momento achava que estava invisível – e avistou ao longe o que seria sua alegria momentânea e permanente, mas não eterna. Olhou como se não pudesse ser olhada e, mais que olhares se cruzando, as íris de ambos se fundiram. O mel no verde e uma única pupila. Que se dilatou. Antes mesmo de se aproximarem, pensou como seria quando chorassem. As lágrimas seriam divididas ou multiplicadas?  Pouco sabia. E nesse caso não pensou que não se importava. E foi assim que seu pingente passou um bom tempo no bolso daquele rapaz.

Mania humana de por a culpa em um acontecimento que – parece – desencadeia vários outros, negando qualquer força outra que não seja explicada pelas leis mundanas, ela quase amaldiçoava aquele dia. Acabou o chá e começou a rotina diária de lembranças. Fundir outras partes do corpo com outros rapazes não deveria ser tão difícil. A ignorância é uma benção. Quem não conhece o melhor, não se importa em ter o pior. Bethania sabia. Nem tinha tanto conhecimento e já queria muito. Como é que seria? Cada parte do seu corpo ouvia os sussurros de cada parte de outro corpo. Aquele corpo. Aquela fusão.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

A ciência explica

Muito se diz sobre a minha vida. Sou conhecida como a bela adormecida. O bela eu aceito de bom grado, já o adormecida não está entre os meus adjetivos preferidos. Conta-se sobre a minha história: “era uma vez uma rainha e um rei muito tristes porque não tinham filhos. Até que um dia nasceu uma linda princesinha que eles chamaram de Aurora”. Pois bem, chamem-me de Aurora, meu nome registrado, e não dessa alcunha popular que não teve o meu consentimento. Dizem que no dia do meu batizado, vieram três fadas madrinhas, Fauna, Flora e Primavera. Para o bem da verdade, elas são três moças muito queridas, mas fadas madrinhas?? Contam por ai que uma me deu uma grande beleza e a outra um maravilhoso dom para o canto, mas, por Deus, quem me deu isso foram os genes dos meus pais! A ciência explica. Convenhamos, fada madrinha que é fada madrinha, transforma abóbora em carruagem. Mas ainda tem um absurdo maior: a tal da bruxa. A Malévola não passa de uma moça ressentida por achar que não foi convidada para uma festa. Mas a parte que ninguém mostra é que ela foi convidada, sim! O convite apenas não chegou por motivos de que o correio do reino é muito incompetente. Malditos serviços públicos! Extraviaram a carta da coitada que, em um surto de raiva, chegou no meio da festa como intrusa – sendo que seu nome estava na lista – e lançou a mim algumas injúrias. O jornal do reino, sensacionalista e sem pudores, publicou: “Bruxa Malévola lança feitiço em inocente princesa”. Como era de se esperar, a repercussão foi grande. Para continuar com a polêmica, inventavam a cada dia uma nova manchete: “Para alegria de todos, a fada madrinha Primavera suaviza feitiço”. E a notícia seguia: “Amenizando o feitiço da bruxa má, que dizia que no dia em que completasse 16 anos, Aurora espetaria o dedo no fuso de uma roca de fiar e morreria, fada madrinha diz que a querida princesa não morrerá, apenas entrará num sono profundo, do qual só vai despertar com um beijo de amor sincero”. E, para comentar isso, faltam-me até palavras. É cada situação que me colocam! Infeliz ou felizmente, preciso tirar toda a magia que essa história inventada possui: não existe nenhum feitiço, nem bruxas e fadas madrinhas. Muito menos príncipe ou amor sincero. Eu, Aurora, a querida princesa, a tal da bela adormecida, durmo muito, sim, e por períodos longos, e a explicação é simples: tenho distúrbios de sono. Sou narcoléptica!!